Sozinho

Talvez, como nunca antes, está envolto como que por uma camada plástica de “Não”, levemente pegajosa, como quando tiramos o apresuntado velho do pacote. Tudo está envolto nessa legítima vontade de dizer não para tudo, inclusive para si mesmo, talvez especialmente para si mesmo, e há também uma persistente apreensão de que alguém vá se aproximar e dizer algo ou - tão terrível quanto - ninguém vá se aproximar e dizer nada. O não paira suspenso no ar, brilhando levemente como tudo que é levemente invisível para os olhos desatentos, e parece esfarelar lentamente, definhar. Parece que a escolha de palavras é tão cuidadosa por haver uma necessidade de espremê-las para fora, como uma grande pústula que, no entanto, ainda não está pronta, não chega a brilhar de tensão a pele que contém o líquido. Se não se espreme as palavras pra fora, nesse caso, há o grande risco de preencher linhas e mais linhas com a palavra Não, uma negativa disforme que nada faz por si só. Ela chega mesmo a beirar a infantilidade, mas está sombreada por uma dorzinha enjoada, de quando esprememos espinha junto ao lábio. Exprime uma espécie de imobilidade, uma separação entre coisas, uma perda e um sintoma. E nada disso, também, mas não pelo nada, e sim pelo não, pela negativa disso, e talvez seja ela mesma a resposta. Mas resposta pra quê, não há nenhuma pergunta, não há ação, contraponto, curiosidade ou dúvida, somente uma resposta persistente que não vem de ninguém em especial e de todo mundo ao mesmo tempo, inclusive e especialmente de si mesmo, um inaudível não, invisível não, indizível não. É um retração motora, como quando sentimos um toque indesejável, uma repulsa e um olhar de censura, e certa dignidade pode ser encontrada nesse sentido, mas não quando - não assim. As vezes parece monumental, um enorme desvio da luz que esbarra nessa coisa que vagarosamente como a areia de uma ampulheta vai derramando seus restos sobre tudo, dunas se formando nos cantos. Outras vezes parece que cada farelo que se solta é ele mesmo um não, um restinho da própria coisa, que é ele mesmo a coisa também, um desdobramento tão equivalente pela sua totalidade e em si mesmo potente. E são tantos, pousando delicadamente sobre os móveis enterrados disso. É difícil falar, e não sei pra quê insisto, e não gosto do resultado, e não me movo, também enterrado. É a terra desse lugar, ela é um grande não, há anos me dizendo suavemente, sussurrando em meu ouvido, enquanto entra pelas janelas que deixei abertas na esperança que entrasse outra coisa. E entraram outras coisas, e tantas coisas, e todas elas agora se parecem com esse não, não sei.

Comentários

Postagens mais visitadas