Para sempre

Entre as pipocas caídas que varria entre os assentos, viu o brilho leve do metal: um Cartier novo caído no chão. Recolheu, pôs no bolso na intenção de entregar ao achados e perdidos como sempre. Não pensou muito nisso. Seguiu varrendo as pipocas e recolhendo os copos de bebidas e embalagens de doces, tudo no saco de lixo preto. Era uma atividade com a qual estava acostumada, fazia desde sempre, já se tornara parte de seu corpo e era até automática. Mas no bolsinho da cartucheira, ao lado de uma escova e pano, o relógio era uma diferença. Apoiou o braço sobre a vassoura, tirou-o de novo para olhar e ver os detalhes. Os ponteiros azuis reluziram sobre o metal prata, o acabamento fino e elegante. Um objeto quase pornografico em suas mãos calejadas. Talvez nunca tenham tocado algo tão pequeno e tão aparentemente valioso. Pensou nisso pela primeira vez. Sacou do bolso o celular velho e pesquisou a marca escrita entre os números do mostrador, até encontrar o mesmo modelo à venda on-line. O singelo preço levou sua mão a boca: custava o que recebia em um total de dois anos de trabalho. Olhou o ponteiro dos segundo tiquetaquear lentamente, e as engrenagens da cabeça saíram do modo automático de surpresa. Meteu o relógio no bolsinho outra vez e voltou a varrer, mas dessa vez pensava. Pensava muito, o cérebro fervia de pensamentos, transbordando em borbulhas lógicas. Dois anos de trabalho enfiados no bolsinho. Olhou o entorno, certificou-se de que não havia nenhuma câmera, sentiu que os movimentos do braço no varrer já não pareciam naturais, achou que nunca em sua vida inteira soubera varrer de verdade. Mesmo assim, terminou as demais fileiras de cadeiras, ainda havia os banheiros para lavar.

No trem a caminho de casa sentiu um medo que não sentirá nunca. Essa será a única vez. Segurava firme a bolsa, e olhava todos a sua volta com os lábios muito juntos. Olhava muito para o chão também. Os pensamentos corriam pelos trilhos do cérebro e a uma hora e meia de estações passou veloz por ela. Entretida com a dúvida e os dilemas, se era o certo, se havia alguma chance de dar errado, se isso dizia algo sobre ela, se valia a pena, e também sua família, os filhos que ia ter um dia, seus pais, as chances que teve e que deixou de ter, os dedos apertados na alça da bolsa, todas as vezes que teve vergonha de repetir a merenda da escola, os elogios que recebera na vida. A estação, a última da linha do trem, estava escura e para ela pareceu assustadora como nunca antes, como se todos ao redor soubessem de seu segredo. Caminhou sentindo os passos inconsistentes de quem duvida de algo.

Em casa, segura e usando a camisola bege de sempre, sobre o lençol da cama de solteira e o luar que atravessava a janela do quartinho, olhou o relógio pela terceira vez. Os dedos giraram o objeto em todos os ângulos, e os olhos observaram atentamente o número de série, doze algarismos elegantemente cravados na prata. Memorizou-os, como se fossem agora seu cpf e definissem quem ela era. O tique taque era tão minúsculo que se poderia julgar inexistente, mas no silêncio do quarto ela o ouviu com certo carinho, como quem ouve uma respiração de criança dormindo.

Sei que os próximos passos do conto são a inserção de mais personagens e conflitos morais, um gerente que chama a equipe de limpeza para perguntar sobre um Cartier de prata com ponteiros azuis perdido por um banqueiro importante, ou então a pessoa para quem ela vai vender o relógio e para quem terá de inventar mentiras como herdei do meu avô que faleceu a pouco. Mas tinha vontade de deixar essa moça sozinha pra sempre com esse relógio, sentada no colchão mole da cama, os calos dos dedos roçando a prata que gira para ser examinada pelos olhos atentos. Tinha vontade que o tempo parasse e ficassem os dois suspensos na iminência do abismo, que pudessem se tornar um só, que alguém um dia esculpisse uma estátua em sua homenagem e imortalizados os dois decorassem alguma praça, cobertos de cocô de pomba e um chafariz em volta. Queria que o brilho que reluzia do mostrador em seu rosto fosse capturado por uma câmera e pudessemos rebobinar infinitas vezes, vendo o relógio girar e girar e os ponteiros azuis girando lentamente na telona do cinema, tão grande que trezentas pessoas de uma vez pudessem ver e ouvir aquela mulher girar aquele relógio em suas mãos. Tinha vontade que essa moça fosse imortal e encontrasse tamanho prazer na prata fria que não fosse necessário nunca mais se levantar, que o mundo em seu entorno viesse a se decompor completamente e o quarto tomado de musgo e mofo fosse o cenário de um quadro que pudéssemos ver o encontro eterno dela e dos seus dois anos de trabalho materializados pelo objeto. É natural que o conto prossiga, é algo que nós esperamos, mas hoje eu quero essa anti natureza que surgiu, esse revés da realidade, essa possibilidade de ficção que começa na verdade quando ela não entrega o relógio e o leva para casa e se extende agora para todo o sempre, num tiquetaquear singelo que jamais vai se completar, jamais irá a lugar nenhum, vai manter em suspenso as duvidas morais, os valores pessoais, até o próprio significado do objeto e sua utilidade, e vai se tornar apenas essa moça que encontrou no chão do trabalho dois anos do seu próprio trabalho esculpidos em forma de relógio. O tempo em forma de tempo por toda a eternidade.

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