Inquilino
ESTOU ENCURRALADO. O grito não saiu se não para efeitos narrativos, mas me enxerguei encostado a parede, exatamente na quina, as escapulas tocando cada uma uma parede diferente, a pressão que o meu próprio corpo fazia contra o concreto frio e toda aquela imobilidade. E ali, encurralado, eu tive que a olhar nos olhos mais uma vez: longe, talvez no outro cômodo, de esguelha, de passagem, uma grande figura alta e envolta em um tecido manchado. Reconhecemos a presença um do outro, ela me relanceou o olhar e eu não pude escapar, não havia saída - ou talvez eu não desejasse a saída. Mas encontrar o olhar me estremeceu completamente, cada osso do meu corpo deu um solavanco tímido e de dentro pra fora despejei lágrimas que pareciam fazer força para sair. Não era o nosso primeiro encontro, e sempre um desgosto e uma náusea quando eles aconteciam, um medo tão súbito - mas repleto de desejo. É um medo estranho esse, que me assalta quando me vejo encostado à parede, as escapulas firmemente empurrando o concreto como descrevi antes, é um medo desejoso, um medo que me empurra simultaneamente para frente e para trás. Me puxa e me repele. Já tive momentos mais corajosos, nos quais sustentei o olhar dela por um monte mais longo, cheguei mesmo a me deixar levar pelos passos tortos e imprecisos, um ruído baixo, extenso e volátil enchendo todo o tempo desses poucos passos que me atrevi, e vi a figura no outro quarto sem que ela titubeasse. O nosso encontro só afeta a mim, é claro. Mas desde esse encontro, o qual cedi e permiti que o desejo me levasse mais do que o medo me freava, nunca mais me dispus a ir tão longe. Tão logo a vejo de relance em qualquer outro cômodo, desvio o olhar antes que ela me pegue de surpresa espreitando. Acho que é ela quem me espreita. Convivemos assim há algum tempo, nessa casa que ecoa cada gota de torneira mas que também reflete tanta luz de sol. A figura é um inquilino insuspeitado, não a convidei, não assinamos contrato, não houve qualquer acordo entre as partes, mas curiosamente eu a senti se aproximando, esgueirando por entre as frestas, despejando uma sensação estranha, uma sensação morta. Até que um dia ela estava vivendo por aqui. Uma parte de mim deseja que ela vá embora, desapareça para sempre, que me permita aproveitar melhor o imóvel, mas uma outra parte, quando sente o cheiro estrangulante da sua presença, olha de esguelha como que prevendo vê-la - tenho medo de dizer desejando vê-la, as palavras tem muita força. E assim convivemos, fingindo que não estamos dividindo um espaço mas ao mesmo tempo notando a presença um do outro, eu muito mais do que ela. E quando me vejo assim, acuado, preso ao canto da parede e com as pontas das escapulas fazendo tanta força contra o concreto, quando realizo que ela me vê e que agora eu já a vejo também, que é fato que ela está aqui e que por mais que eu a ignore ela segue me rondando, penso que talvez se aproxime cada vez mais. O tecido manchado não balança, não se move de maneira nenhuma, nos poucos milésimos de segundo que me atrevo a atestar sua existência. E está ali, enquanto não estou olhando está ali, provavelmente atrás de uma porta, num canto escondido do armário, dentro de uma caixa velha, as vezes na fresta do ralo. Nas ranhuras do piso. E digo tudo isso, desejando que ela não esteja também nas minhas frestas, dentro dos meus poros, habitando o meu corpo. Acho que ela sabe que tenho medo, e por isso é tão gentil em não estar sempre a tona. Ainda não nos tornamos sequer conhecidos, mas ela me invade sutilmente, com a delicadeza de uma navalha afiada, deixa poucas marcas - mas tão elegantes. E de súbito já não sei mais se sou eu o proprietário, de repente me vejo eu próprio inquilino, vivendo num espaço que não me pertence e que inutilmente chamo de casa. As vezes, me vejo inquilino de mim mesmo, desse corpo que eu habito e que a figura vem gentilmente se apossando, e me pergunto quando será que nós vamos ser capazes de nos ver para além do relance. Dessa vez, a nossa troca de olhares foi muito curta, não sou capaz de sustentar o olhar, mas mais uma vez me vi admitindo, usando de novo essa palavra, esse pensamento que me invadiu de desejar olhá-la. Desejar, talvez, que ela me abrace, e enfim não saímos dessa casa, quem sabe juntos.
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