São coisas da vida
Há meses a coisa estava pregada em seu peito como um grampo enferrujado, soando persistente como uma torneira pingando, doendo como um ferimento cheio de pus. Estava tão clara dentro dele que foi tomando forma, ganhando voz e logo chegou aos ouvidos da terapeuta.
- Talvez seja melhor aumentar o número de seções. Você pode vir mais vezes por semana?
Mas parecia que apenas a terapeuta não bastava: ganhando firmeza, a coisa saiu durante a noite para o o ouvido da namorada, que encarou como piada. Depois, para os ouvidos de alguns amigos mais íntimos, numa noite de queijos e vinhos - um deles derrubou a taça por ser pego de surpresa. Mas até ajudaram a planejar, em tom de troça. Estava marcado então para o dia 02 de dezembro, havia ainda uns 6 meses pela frente para organizar tudo. E ninguém de fato acreditava naquilo, ainda mais por que foi se tornando conhecimento de todos e de repente a coisa já era uma espécie de piada para todo seu círculo social. Até que ganhou tanta força que contou para sua mãe:
- É o seguinte: dia 02 de dezembro eu vou me matar.
Incrédula, a mãe perguntou o que ele queria dizer com aquilo, e conforme o plano se explicava (tomar veneno a noite sozinho em casa, já deixar todo mundo de sobreaviso para não dar muito trabalho, deixar tudo em ordem e as contas já pagas de funerária e enterro...) de fato ele parecia tranquilo, confiante e com uma clareza exemplar do que aquilo tudo significava. Não foi bem recebido, e, para sua incredulidade, a mãe se recusou a acreditar e disse que ele estava ficando louco. Saiu batendo a porta para dentro do quarto, e, quando ele tentou abri-la para se despedir, notou que estava trancada e pode ouvir um choro estranho, miúdo, por trás da madeira.
Quando contou para a mãe, as pessoas passaram então a levá-lo a sério. Tentaram persuadi-lo das mais diversas formas, fizeram chantagens emocionais, psicologias reversas, ofereceram todo tipo de ajuda, nunca antes havia recebido tantos abraços e tanto carinho - o que a princípio foi interessante mas logo tornou-se insuportável. Não pretendia se matar para receber atenção, mas sim por que a coisa se alojara em seu corpo como um verme, e ele sentia a carne sendo cavocada dia a dia, quanto mais se aproximava da data. As pessoas choravam ao vê-lo e conforme o tempo avançava, o seu círculo social diminuiu, e muitos amigos se afastaram bruscamente e começaram a tratá-lo mal, falar de sua loucura pelos bares da cidade, comentar como era possível um sangue tão frio. Nem mesmo sua namorada permaneceu, talvez tenha mesmo sido uma das primeiras a pular fora e provavelmente a que mais espalhou o assunto, incrédula e, em alguma medida, agredida pela decisão, se sentindo infeliz por perder o amor e (injustamente) culpada por sua decisão, ainda que ele jamais tenha atribuído a ela qualquer resquício de responsabilidade. Quando ele notou, haviam uns 4 ou 5 amigos que permaneceram, esses insistentes em chamá-lo para compromissos alegres e divertidos, os quais ele não se negava a ir e tão pouco parecia deprimido ou suicida. De fato muitas vezes era o espírito da festa, fazia com que todos rissem e as vezes encerrava com alguma piada sobre como era bom eles aproveitarem já que logo logo não teriam mais o ás da comédia entre eles. E então ria sozinho, enquanto seus amigos se olhavam soturnos. Mas nos seis meses de repetição insistente sobre o assunto, uma espécie de resignação começou a tomar seus amigos e aparentemente eles foram capazes de compreender e, de certa forma, se despedir dele. Era estranho e talvez fosse só mais um jogo na esperança de fazê-lo desistir, mas pareciam todos decididos a conviver com sua decisão. Exceto, claro, sua mãe, que desde o anúncio fizera todas as coisas possíveis e ao seu alcance para fazê-lo mudar de ideia, sem sucesso.
A penúltima parte do plano consistia em gastar toda a sua poupança, economias de anos e anos com o objetivo de mudar-se para uma casa e assegurar uma vida tranquila, pagando tudo que era preciso para que sua morte não causasse problemas a ninguém - nem seus amigos, nem sua mãe - e, com o que sobrasse, realizar uma viagem longa pelo marrocos. Pelo menos 20 dias de estadias em diversas cidades, sempre em hotéis caros, restaurantes, feiras, festas, souvenires para os poucos que permaneceram como amigos, tudo que se tem direito! Esbanjou tudo: comeu tudo que sentiu vontade, saiu todas as noites, dançou, bebeu, beijou todas as bocas que encontrou, entrou em algumas brigas por conta disso, comprou tapeçarias e enviou para sua mãe, visitou lugares incríveis e inimagináveis, andou de camelo, sentiu sede no deserto e depois se deliciou com a água mais cara que havia, nadou em águas cristalinas, se apaixonou e desapaixonou por pessoas das mais diversas nacionalidades, frequentou templos e se aproximou da ancestralidade do país, sentiu a cultura do país invadir-lhe as veias e voltou para casa no dia 01 de dezembro transformado: cheio de vida.
Em sua viagem de volta, nas 8 horas que teve dentro avião, bebericando um champanhe e olhando o avião deslizar calmo sobre as nuvens, uma espécie de paraíso sobre a terra, procurou intensamente a coisa que até então estava pregada em seu peito e nada encontrou. De fato, nada encontrou não corresponde a sensação que ele sentia, pois pela primeira vez em muito tempo se sentia repleto, tomado por coisas e não vazio, com aquele latejar incessante. Não, dessa vez, todo o seu ser estava em festa, pulsava ao invés de latejar, era um coração e não uma pústula. E por conta disso primeiro teve de engolir seu orgulho, e assumir para si mesmo que não tinha mais desejo de seguir com os planos, tudo que menos queria era morrer. Jamais imaginara que a viagem iria dar-lhe tamanho desejo de seguir vivendo. Mas estava tomado de alegria, ainda que com vergonha de não manter sua palavra, e quando chegou no aeroporto e foi recebido por uma mãe coberta de lágrimas, que não soltava sua mão por nada e que parecia temerosa em sequer tocar no assunto, sentiu que devia dar-lhe a notícia o quanto antes e assim o fez, quando entraram no carro e seguiram pela rodovia. Viu os olhos da mãe, já cheios de lágrimas, se encherem então de uma alegria jamais vista, uma felicidade que parecia roubada de tão não merecida, e ela não pôde dizer nada a não ser rir de contentamento. Deu-lhe um beijo no rosto e riu, riu o trajeto todo, riu quando subiu com ele e suas malas para seu apartamento, riu quando perguntou se podia dormir com ele por via das dúvidas e ele respondeu que sim, riu quando o ouviu mandar mensagens aos amigos anunciando a nova vida que se iniciava e com as piadas que os amigos fizeram, riu quando marcaram uma festança para o final de semana e riu quando ele disse que ia morrer de tanto beber, ainda que tenha tido um leve receio nessa afirmação. Mas seus receios não se concretizaram, tudo que aconteceu foi uma leve ressaca e uma casa imunda que ela com prazer se dispôs a arrumar.
No entanto, ele havia encerrado o contrato do apartamento e precisava entregar as chaves nos dias que se seguiam, voltando então a morar com a mãe por um tempo. Havia abandonado o emprego, já deixando tudo explicado aos chefes e encarregados, e por isso ia precisar de um tempo para se reestruturar. Em especial por que gastara todo seu dinheiro e, mesmo que não tenha desembolsado nenhum centavo para sua festa de volta-a-vida, não tinha dinheiro sequer para tomar um ônibus. Com a volta entusiasmada, a mãe muitíssimo feliz por ter o filho vivo, incentivava-o a fazer tudo que desejava, crente que fora justamente o cumprimento dos desejos que o salvara da morte, e deu-lhe sua senha do banco e tirou o dinheiro debaixo do colchão para que o filho pudesse retornar a vida. E ele assim o fez, retornou a viver, ainda que não estivesse empregado estava vivendo, vivendo bem, festejando, vivo como nunca! Que beleza é viver! E chegar embriagado todos os dias! E vomitar pelo carpete, comer toda a comida que a mãe comprou, levar os amigos em casa quase todos os dias e festejar com eles até 4 ou 5 da manhã! E assim foi por alguns meses, sem conseguir emprego, sem dinheiro para se manter, sem perspectiva de mudança... mas vivo! Totalmente vivo! Sem nenhuma sombra de suicídio! E o dinheiro do banco diminuindo, a casa sujando com mais e mais frequência... Então ele deu de pedir empréstimos aos amigos, e também de se divertir tanto que sempre saía carregado ou era enfiado num táxi para voltar para casa. Começou a flertar com qualquer pessoa, fosse ela comprometida ou não - incluindo nisso todos os cônjuges de seus amigos. Deu de farrear com qualquer pessoa que lhe desse trela, e levar essa pessoa para a casa de sua mãe e passar a noite inteira fazendo os mais diversos sons enquanto aproveitava a maior dádiva da vida, o sexo! Ah, como é bom estar vivo! E viu seu círculo de amizades começar a recusar os convites, e recebeu cobranças e amigos batendo na porta pedindo que pagasse o que lhes devia, outros dizendo que não estava mais sendo tão bom revê-lo... que aquilo era demais. E sua mãe cada dia mais descabelada, o avental que já não saía de sua cintura, as manchas de vômito no carpete e as contas da casa se acumulando... Os cabelos brancos caindo... A geladeira sempre esvaziando... muitas vezes ficando vazia... Ela deixando de comer para que ele pudesse seguir vivo. E ele vivo! E ela não tanto. Não todos os dias. Alguns dias se perguntava se valia a pena estar viva. Alguns dias, nada.
Então, um dia, ele chegou na casa da mãe extremamente bêbado, com duas moças e um rapaz e anunciou em alto e bom som que iam para o quarto celebrar um bacanal, tropeçou no carpete e derrubou a televisão. De tão feliz e bem humorado, riu do acidente e ainda comentou que agora não iam poder assistir o domingão do faustão, abraçou uma das moças e o rapaz pela cintura e puxou-os para o quarto de sua mãe, por que se confundiu. Ao ver a mãe deitada, nem pestanejou: começou a tirar a roupa ali mesmo, para constrangimento geral, e só notou quando todos os convidados já tinham se retirado e ele estava de cuecas em frente a mãe, esta sentada na beirada da cama, as olheiras tão fundas que facilmente poderia ser confundida com uma assombração. Ela o olhou bem nos olhos, tão fundo e tão esvaziada, como quem pedisse um abraço ou um carinho, e disse, num tom doce:
- Talvez fosse melhor se você tivesse morrido.
Ele sustentou seu olhar. Viu que além da dor de admitir aquilo, havia verdade no que ela dizia. Foi difícil notar tudo isso em meio ao álcool, mas sua mãe foi tão firme que não havia dúvida. Ele não disse nada, levantou como pode e se apoiou nas paredes, tentou por duas vezes sair do quarto mas tropeçou nas calças que estavam no chão e então, quando finalmente conseguiu se firmar e ver o corredor para fora da porta da mãe sem sentir a realidade entortar, saiu e rumou para o seu quarto. Não pensou em nada daquilo no mesmo dia. Só dormiu. Dormiu muito, talvez umas 18 horas corridas. Sua mãe em nenhum momento foi conferir se estava tudo bem. Podia ouvir o ronco dele ressoar pela casa e, quando ele silenciava, era como se a casa tornasse-se um templo, e ela era invadida pelos sons dos passarinhos lá fora. Tomou duas xícaras de chá nestes momentos de quietude, e sentiu um prazer imenso no líquido quente. A noite ela saiu de casa, agasalhada por conta de uma garoa fina que começava a cair sobre a cidade, e foi para a casa de uma amiga. As duas jantaram juntas, falaram sobre as dificuldades da vida. Quando ela voltou, encoberta por um lenço para não se resfriar e terminar doente, encontrou no balcão da cozinha o vidro de veneno de ratos aberto. Pegou uma xícara grande, fez um chá. E, bem devagar, ouvindo o som dos grilos no jardim, bebeu sentada na cama ao lado do corpo de seu filho o último chá da noite.
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