Um tiro filosófico

Hoje pela manhã gastei uns bons 30 minutos argumentando e elaborando sobre como me incomoda a necessidade política da arte atualmente. Ainda que compreenda sua necessidade, e acho perfeitamente válida e de fato irredutível no presente cenário político do país (e mesmo do mundo), não pude evitar me unir a polarização e torcer o nariz. Não que eu a invalide ou mesmo que eu discorde, apenas não acredito que haja o mesmo charme, a mesma força de uma boa obra que não se pauta necessariamente em afirmações políticas.
Ao longo da minha formação muito pensei sobre a arte como panfleto (ou manifesto, ou ação-político-social), e de modo geral gosto de olhar para ela como algo que vai realizar estas ações apenas por existir. Atrelar à obra de arte a utilidade político-panfletária me soa exatamente tão problemático quanto a ideia de uma arte aplicada à educação, subserviente da mesma e não em diálogo.
Mas eis que passei estes 30 minutos discutindo e defendendo meu ponto de vista de como a poesia (no sentido mais aristotélico) deveria estar a frente da arte e, agora a noite, tomei um tiro filosófico: vi, em uma imagem, uma pixação num muro com as palavras "poesia não basta". E mais eficaz do que meus 30 minutos de blablabla matinais, essas três palavrinhas me obrigaram a botar o pé pra fora das minhas certezas e cá estou eu repensando em longos parágrafos tudo que disse pela manhã.
Não pretendo, porém, elaborar exatamente sobre a necessidade da poesia, ou se ela somente basta (referente à quê e em que sentido), ainda que esteja naturalmente fazendo isto agora mesmo, mas sim pensar na discrepância da eficácia entre meu longo discurso para orelhas desinteressadas realizado pela manhã e esse tiro fulminante que foi a pixação. Claro, pegou em mim com tanto vigor por que estava eu já pensando sobre isso, e então a comunicação se estabeleceu por quê já havia certa pré-disposição. Porém, o que me inquieta é a capacidade de síntese, o poder de uma frase afirmativa tão crua e violenta.
Como se dá, exatamente, esse soco recebido nessa merreca de letras? Algo deve haver na própria forma da coisa, que demonstra como o meu grande discurso tinha pouca ou nenhuma capacidade de transformação ou diálogo. De fato, estas três palavras escritas na pedra, aparentemente tão irredutíveis, extrapolam elas mesmas a possibilidade de seu discurso, e caem em mim como um mundo vasto a ser explorado. Ao invés de uma longa explicação (como esta que estou fazendo), elas tem concentradas um mundo de pensamento, uma longa jornada de descoberta e atrito, um percurso a ser realizado.
Quando discorro (como agora mesmo), estou não só abrindo o caminho, mas também enchendo ele de placas e letreiros luminosos, setas que apontam o lugar, talvez até umas barraquinhas com uns souvenires. Esse tiro filosófico que tomei, por outro lado, é apenas uma trilha aberta no meio da mata, e ainda que possamos nos perder ao embrenhar por entre ela, é da exploração que vai surtir o prazer da descoberta. Este texto é um ensinamento pra mim que digo ser professor.
Inclusive, penso que talvez esta seja a diferença entre a academia e a arte, dicotomia da qual sofro quase clinicamente. A academia traça estes longos percursos, entrega mapas e enche de placas, na expectativa de que quem seguir pelo percurso conheça-o bem e, talvez, estenda a trilha para um pouco além do que já se tem trilhado. Digamos, uns 15 centímetros. E ali mesmo meta uma placa, com seu nome bem escrito, e um letreiro de neon, e os mais espertos abram sua barraquinha de lembranças - o importante é capitalizar. A arte, por outro lado, corta mato adentro, as vezes se mete em enrascadas e geralmente não vai se dispôr a pegar na mão de ninguém. Talvez pixe os nomes na parede da gruta a qual desemboca o caminho, mas provavelmente vai deixar pouco mais que umas pistas que levem quem quiser ir até lá.
Por isso, inclusive, antes de começar o texto fiz o exercício de sintetizá-lo. Queria transformar tudo isso que estou falando, essa bonita curva como a do Peer Gynt, em um caminho perdido no mato. Como chamar essa percepção de capacidade sintética que eu encontrei na pixação, de forma a ser metalinguístico e fazer dela a mesma coisa? Assim: trata-se de um tiro filosófico.
Acho que falhei.

Comentários

Postagens mais visitadas