É claro que eu sinto sua falta.

Doeu? Eu preciso falar sobre isso, é preciso que eu saiba. Diga logo.
Não escrevo bem, pode me olhar com deboche e seu costumeiro desprezo. Ganha-se imunidade quando se anda na lama de pés descalços, e veja que me esforço em ser minimamente cuidadoso em escolher as palavras, para que caso haja alguma chance desta porcaria alcançar você, correndo atrás de um retardatário, você sorria cínico - sua pose diz que não, mas eu acho que há um quê de patético na alegria que você decide esconder.
Fico aqui desperdiçando palavras, escolhendo termos, imaginando se há algum resquício de doçura (aquela mesma, que quase não encontrei). Só me responde: doeu?
É estúpido, pra ser franco, mas foi como uma punhalada silenciosa: caminhei mais cinquenta quilômetros até notar que estava sangrando. Fui a Irlanda e estou de volta, e deixei um rastro de sangue seco pra provar. Pode chamar de performance, se quiser.
Sangrei tudo - não derramei nem uma lágrima, pode ficar orgulhoso - mas sangrei tudo por ti. E quando notei que escorria, que me desfazia lentamente pelo oco que você deixou (como já fez outras vezes, mais sutilmente), entendi tantas coisas sobre mim. Não sobre você, quem é você afinal de contas, é uma pergunta a se pensar. Mas havia coisas sobre mim neste gesto cúmplice, diria quase que vingativo.
Quero saber se doeu para que entenda algo sobre você. Tenho a clareza que não me desculpo mais, que isso já está por demais resolvido, e que mesmo isso aqui já é passar dos limites. Está morto e nós dois sabemos disso e sabíamos disso mesmo quando peguei o desfibrilador e fiquei, sob o mais forte holofote que encontrei, fazendo cena pra reanimá-lo. Não se move, não se pode fingir que há qualquer coisa viva entre nós. Veja que tento não falar em metáforas, e não te trato como animal - sou infantil e você sabe.
Continuo investigando entre o que resta de nós - você mesmo disse, houve um nós - e quero entender o que houve do outro lado da cerca elétrica bem instalada. Fico me perguntando se, como eu, você também olha furtivamente pro outro lado do nosso pequenino e bastante desimportante muro de berlin, assim em letras minúsculas mesmo. Se o gesto foi de asco, de recusa, de agressão. Por isso quero saber se doeu - ou mesmo se ainda dói, porque doer é coisa dos vivos.

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