O último guardião

Uma loja de departamento pode ser um universo, se você parar algum tempo pra olhar bem. Dá pra enxergar os braquiossauros e também os gnomos que convivem nesses lugares. Eu trabalho em uma dessas lojas a alguns meses, localizada em um shopping da minha cidade, e enxergo com frequência portais para outras dimensões entre as araras de roupa, potes de ouro no fim dos arco-íris que são as seções de brinquedos, unicórnios escondidos entre os cds purpurinados na seção de música. Foi numa quarta-feira tranquila, enquanto eu, abaixado, colocava no lugar algumas caixas de copos de vidro, que o Oliver apareceu. Ele tinha sete anos, usava uma camiseta listrada puída e uma bermuda marrom, os cadarços do allstar vermelho desamarrados, e era o escolhido que vinha salvar a humanidade. Pra isso, precisava destruir uns cristais e enfrentar um grande monstro peludo - os copos e eu, respectivamente.
Quando notei, todos os copos da prateleira tinham vindo abaixo e a minha frente estava um moleque em posição de ataque, brandindo os punhos fechados. Não estivesse eu acostumado a coisas muito mais assustadoras que se encontram nestes espaços malignos criados pelo homem, teria no mínimo chamado o gerente. Apenas desviei o olhar em sua direção e o encarei por alguns segundos. Neste momento, eu o vi titubear por uma fração de segundo, menor do que o espaço de tempo que leva pra gelar o estômago, mas ele não mais desviou de seu caráter quixotesco e estava pronto para derrubar o gigante.
Um gigante abaixado pode ser bem assustador, mas um gigante em pé é assustador elevado a algumas potências, então aproveitei o efeito dramático, apoiei minha mão direita no chão e fui me erguendo, vagarosamente, como um grande vilão que se mostra finalmente ao seu herói, no último capítulo da saga. Ele acompanhou esta cena com os olhos, os erguendo até alcançar os meus quase dois metros de altura em sua totalidade, e eu o vi desarmar-se perante o desafio. A medida que eu me levantada, o seu queixo caía. Por fim, ele disparou para fora do corredor, e eu o segui com meus passos longos e pesados, graves como tambores. Fee-fi-fo-fum. Percebi os produtos estremecerem cada vez que meus pés se apoiavam no chão, e Oliver disparando ligeiro por entre os cacos dos cristais, virando no fim da prateleira, adentrando a zona desconhecida das roupas femininas. É evidente que ele desapareceu em seguida, provavelmente abduzido por algum ser elemental entre as blusas de moletom, e eu me recolhi à minha função de recolher o que restava dos preciosos copos mitológicos.
No dia seguinte, eu estava caminhando em direção ao estoque e passei próximo a área de alimentos. Oliver estava lá. Trajava a mesma armadura do dia anterior, segurava em sua mão direita uma lata de coca-cola, o elixir da vida, e na esquerda uma barra de chocolate. Estava se recuperando da batalha anterior e provavelmente iria me desafiar outra vez em sequência. Mas não esperava que os monstros invadissem os campos seguros alimentares, por que sou do departamento de decoração, e mais uma vez o pavor estatelou seu rosto. Virou-se e tentou correr, mas eu o segurei pela mão e abaixei-me lentamente para ficar mais próximo do seu rosto. Perguntei como ele chamava e finalmente soube a alcunha do escolhido. Quis saber onde estavam seus pais, e ele disse que não estavam ali. É claro que não estavam, grandes heróis trabalham sozinhos. Indaguei como ia pagar o que tinha comido, e ele me disse que não tinha dinheiro e que precisava ir embora - era urgente. Notei como ele estava inquieto e, assim que soltei da sua mão, ele correu em direção a seção de roupas femininas outra vez. Fiquei observando por cima das prateleiras e desta vez pude vê-lo entrar no estoque. Gritei para ele que esta região era proibida e que ele estaria em apuros caso entrasse, mas ele não me ouviu, obstinado que era. Eu o segui, mas jamais o encontrei no estoque.
O estoque, aliás, é o mundo paralelo sombrio da loja de departamento. Lá não tem música para melhorar o seu humor, tudo é mal iluminado, são poucas as cores - algumas variações de marrom e outros tons mortos - e é um universo habitado por grandes seres mecânicos, maiores que gigantes, intitulados "empilhadeiras". Na verdade, o estoque é o mundo real, onde vivem as máquinas que dominam os seres humanos e utilizam-se deles para sobreviver. E neste lugar sombrio estava perdida uma criança de sete anos, destinada a salvar a humanidade. Gritei seu nome diversas vezes, com minha voz grave e ameaçadora, e acho que isso o fez se embrenhar com ainda mais afinco por entre as caixas e mais caixas de produtos.
Na sexta-feira, eu estava trocando o preço dos bichos de pelúcia que estavam em promoção, entulhados numa grade caixa gradeada, e de lá veio o nosso herói. Como um zumbi que sai de seu túmulo, eu vi sua mão erguer-se em meio as bichos e ele batalhar por sua ascensão ao ar livre. Ele me viu e, dotado de tamanha coragem que apenas um escolhido era capaz de ter, puxou meu uniforme e me obrigou a me aproximar dele. Me disse baixinho para eu segui-lo, saltou da caixa e seguiu para fora da loja. Caminhou decidido pelos corredores do shopping, sem olhar para trás para checar se estava sendo seguido, e se embrenhou no corredor que levava ao banheiro masculino. No fim deste, havia uma porta com os dizeres "Somente pessoal autorizado", na frente da qual ele parou um instante, olhou em volta, tocou-a de leve como quem acaricia um amigo, e a abriu, entrou e me deu sinal para que continuasse seguindo-o. Adentramos cada vez mais nas profundezas do shopping, os corredores agora sem pintura e com o cimento a mostra, luzes mais esparsas, o som das vozes das pessoas bastante distante. Não demorou para que tudo que eu pudesse ouvir fossem os seus passos caminhando no chão áspero, bem diferente do piso encerado do shopping. Por sorte, não topamos com nenhum funcionário - ainda bem, porque eu não estava bem equipado para entrar em uma batalha, e a especialidade do nosso herói, pelo visto, era fugir. Depois de uma longa jornada, ele finalmente parou diante de uma porta pequena, metálica, na qual estava escrito "Perigo, não entre" - aviso que ele obviamente ignorou. Quando eu olhei para dentro do diminuto aposento, pude ver uns travesseiros amontoados num canto, com alguns bichos de pelúcia próximos, alguns alimentos num outro canto, uns brinquedos e uns gibis espalhados pelo espaço. Ele então me colocou para dentro, acendeu uma luminária bonita de uma grande loja de decoração do shopping, me ofereceu um pacote de Cheetos e um Toddynho, e então me mostrou seu bem mais valioso - a espada lendária. Amarela, com uma empunhadura azul envolta em fitas e encrustada com uma pedra preciosa de um plástico mais vistoso do que o resto do objeto. Um equipamento mítico, digno de um grande herói. Ele me observava com atenção enquanto eu analisava o item, parecia esperar aprovação, e sorriu quando eu a devolvi para ele com grande cerimônia. Estendi a mão e baguncei seus cabelos, para que ele parecesse ter saído de uma grande luta, e disse-lhe que seu segredo estava a salvo.
As vezes, noto que algum artefato sagrado desapareceu das prateleiras, ou ouço risos baixinhos atrás das gôndolas que estou organizando. Nesses momentos, me elevo até a minha altura máxima de gigante, e começo uma busca por invasores. Mas não é que grandes heróis são protegidos pelos deuses? Desde então, nunca mais vi Oliver em lugar nenhum, ainda que saiba que ele espreita o momento certo para atacar, como todo bom estrategista.

Comentários

Postagens mais visitadas