O fim de todas as coisas
Esta é a última vez que se vêem. Ele está sentado tentando manter a calma, em silêncio. Ela observa os aviões pousarem e levantarem vôo através da vidraça. O mundo, por sua vez, segue quase acabando, como é de bom tom nesses momentos. Logo ouve-se uma voz oca pedir aos passageiros de um determinado vôo que por favor se dirijam ao portão 12 e ela se levanta.
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O apartamento é um pouco pequeno e não tem sofá. Ele olha a chuva pela janela já há algum tempo, vê as pessoas caminhando com guarda-chuvas pela calçada. Já fazem três dias que não se pronuncia uma palavra no apartamento. Executa ações de sempre. Vive a vida de sempre. Até cair a noite.
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Para dormir, põe uma vitrola pra tocar um disco velho. Ela diz que acha charmoso o som da agulha tocando o disco. Ele sorri por lembrar. É possível que amanhã o dia não amanheça chuvoso. Não se ouvem boas notícias por aqui.
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Está sentado no chão treinando aquele acorde de guitarra que nunca acertou. Já tem uns dias que pensa que nunca tocou guitarra de verdade. Uns sete dias, na verdade. Cantar e tocar guitarra ao mesmo tempo, por exemplo, é uma coisa que jamais aconteceu e provavelmente nunca vai acontecer. Cansado, experimenta tocar aquela música que vem ensaiando a um tempo. Ela diz que tem algum acorde errado. Ele volta a treinar.
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Está olhando pela janela outra vez. Os respingos vão sempre descendo, lentos. O som parece um afago. Ele a vê sentada ali quando passa pela porta do quarto pra ir no banheiro. Pergunta se ela quer jantar e não obtém resposta. Está compenetrada, talvez esteja procurando alguém lá embaixo. Na volta do banheiro, passa pela porta do quarto sem olhar pra dentro.
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Ouviu no rádio que uma cidade na Índia foi inundada e decretou estado de calamidade pública. Ele pergunta pra ela por que o choque. Ela diz que já não é a primeira vez que falam sobre o fim do mundo - e se dessa vez for verdade? Ele ri de leve e não responde. Não quer pensar nisso. Não quer falar dessas coisas.
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A chuva não passa, parece que já faz um mês. Ela diz que gostaria de dar uma volta. Ele não diz nada. Ele nunca diz nada.
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Ele a vê sentada num canto do apartamento, lendo algum livro da estante. Quer sentar-se do lado e ler um parágrafo também.
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Ela diz que está sentindo algo estranho. Ele pergunta o que é. Ela diz que sente falta de algo que não sabe o que é, e que talvez precise ir embora. Ele assusta-se. Pergunta o por quê. Ela não responde, diz que você que está lendo não precisa saber.
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É hora. Está de mala pronta. Ele pede que ela espere, que ele ainda não está preparado pra isso, por favor. Eu não aguento ficar sozinho. Ela parece surpresa e diz que já tem bastante tempo que ele está sozinho. Pede que ele por favor não se esqueça de alimentar o passarinho, que ele não tem culpa de nada, que não é escolha dele não poder sair.
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Esta é a última vez que se vêem. Ele está sentado tentando manter a calma, em silêncio. Ela observa os aviões pousarem e levantarem vôo através da vidraça. O mundo, por sua vez, segue quase acabando, como é de bom tom nesses momentos. Logo ouve-se uma voz oca pedir aos passageiros de um determinado vôo que por favor se dirijam ao portão 11 e ela se levanta.
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