Estado de Calamidade Privada

Elenora teve uma noite agitada. Sonhou com muitas pinturas abstratas em movimento, gráficos sonoros e espirros de tinta. Sonhou com muitas paisagens passando por ela como se estivesse em um trem em movimento. Sonhou que escorregava num escorregador monstruoso de plástico, de uns trinta ou quarenta metros - e sonhou também mais um monte de coisas.
Ao passo que, quando acordou pela manhã, Elenora olhou para o teto branco do quarto, viu as marcas da tinta e sentiu um grande vazio dentro de si.
"É fome.", pensou.
Levantou-se, pôs as pantufas, arrastou os pés num ritmo lento e decadente para uma moça de vinte e poucos anos. Sentou-se a mesa. Pegou cada pão e passou vagarosamente a manteiga, como se os seus membros pesassem toneladas. Por fim, comeu, mastigando devagar, engolindo com um esforço sobre-humano. O vazio não tinha passado, e Elenora se indagou o porquê.
"É gripe.", pensou.
Abriu a caixinha de remédios. Tomou um remédio qualquer de gripe à mão - aquele amarelo -, encheu um copo d'água, levou o comprimido até a sua boca, engoliu-o com a água e sentou-se no sofá para ver TV. O vazio ainda ecoando lá dentro de Elenora.
Como era sábado, ela pensou que o vazio podia ser o começo de uma depressão e achou que exercício físico era uma boa resposta para esse tipinho de doença bem-vista pela elite, aquela gente egoísta e sem humanidade. Levantou-se, pegou uma bicicleta verde-limão que ficava na garagem, e foi dar aquela volta gostosa no Ibirapuera. Viu crianças sorrindo, viu gente de-bem-com-a-vida, viu os pássaros cantando e a grama crescer. Disse bom dia a todos que lhe pareciam carismáticos e até se deu ao luxo de perder umas horinhas deitada na grama, olhando as nuvens. E o vazio.
Levantou-se súbita. Era hora do almoço. Era isso - a fome era muito grande, era uma fome imensa, de monstro, de gente obesa, de burger king e refrigerante com refil. Pegou a bicicleta e disparou em direção ao shopping center mais próximo que tivesse burger king, chegou lá de língua de fora e pediu o maior sanduíche que eles tinham. Não viu os olhares de reprovação enquanto comia tudo sozinha. Se tivesse visto, inclusive, daria de ombros e mostraria a língua. Empanturrou-se. Estava satisfeita. Mas estava vazia.
Olhou em volta. Encontrou uma livraria bem grande e pensou que talvez precisasse de conteúdo, de novidades, de arte, de entretenimento. Devorou dois ou três livros curtos, leu verbetes em dicionário, viu todas as capas de revistas, comprou aquele livro que ela queria muito e já tinha esquecido. Não foi o bastante. Determinada, avançou em direção ao cinema, viu dois filmes seguidos (e em cada um comeu um saco de pipoca), entrou numa loja de discos, comprou três cds de seus artistas favoritos, comprou balas, doces, entrou no parque de diversões do shopping e bateu seis records, venceu uma japonesa numa máquina de dança, bebeu dois litros de coca-cola e ganhou um urso de pelúcia. Estava exausta - e o vazio ainda dentro de si.
Passou dez minutos sentada olhando o movimento do shopping. Olhou, viu alguns rapazes e lembrou de seu namorado. É isso! Ligou para ele, marcou de encontrá-lo em seu apartamento em uma hora, disparou na bicicleta, tomou banho, escolheu uma lingerie melhor do que a bege que usava e, quando a campainha tocou, agarrou o homem ainda na porta, deu-lhe o melhor beijo na boca que podia e enquanto fechava a porta já ia arrancando-lhe a camiseta, a própria calça e quando notou estavam nus e fizeram o melhor sexo que fizeram durante todo o namoro ali na sala mesmo e repetiram a dose no banheiro e mais uma vez no quarto - tudo isso sem camisinha - e quando sentiu-se devidamente saciada, deitou-se na barriga dele, arfante, e mirou o teto. Branco. E viu as marcas de tinta no gesso. E segurou a respiração e percebeu o vazio ali dentro, revirando suas entranhas - como grandes e viscosas lombrigas. 
Ele lhe fez um elogio e sorriu. Ela manteve-se em silêncio, compenetrada. O vazio escorria dentro dela, transbordava por seus poros, trucidava suas vértebras, seu pulmão. Sentiu o coração sendo corroído enquanto ele levantava-se para ir beber água. Seu ovário explodia de vazio, seu rim e sua vesícula despedaçavam de vazio e seu estômago talvez já nem existisse.
Quando ele voltou ao quarto, encontrou apenas a cama. O vazio a tinha comido - de dentro para fora.
Ele a procurou pela casa, gritou seu nome algumas vezes - chegou mesmo a olhar pela sacada se ela não havia ido embora nesse meio minuto que esteve na cozinha. Depois, deitou-se na cama, olhou para o teto branco do quarto, viu as marcas da tinta e sentiu um grande vazio dentro de si.

Comentários

Postagens mais visitadas