Um monstro

- Para trás! - berrou, empunhando a cadeira, numa dinâmica de giro com a fera que mais parecia uma dança. Os dois ali, dançando, fazendo círculos em torno do eixo. A platéia fascinada não compreende o ir e vir e todo o ritual que vai acontecendo diante de seus olhos, e o medo da morte compartilhado com o domador os prende, eletrizados, em suas cadeiras.
Mas parece que só quem ataca é o domador, o leão não mais do que reage aos seus instintos.
O leão está há um bom tempo convivendo com o domador bigodudo, na verdade. Talvez eles já sejam melhores amigos e o que há um tempo atrás era um ser intocável hoje deita no colo de seu domador e boceja devagar, a juba espalhada pelo chão verde ou de madeira. O leão e o domador são hoje em dia talvez tão dependentes um do outro quanto jamais imaginaram ser - mas acho que só quem depende, de verdade, é o domador.
(Curiosamente, um leão nada mais é do que um gato muito grande.)
Eles se conheceram um certo dia, e o domador olhou para a juba do felino e soube de imediato - ele será um espetáculo. Este felino monstruoso vai crescer enquanto número do circo, e vai compartilhar este número comigo. Neste dia, já se sabia um destino cruzado e uma linha vermelha atou os dois - ou talvez já estivesse atada de antes.
Foi seu primeiro grande felino. Domara até então somente pequenos bichanos e um único cão. O leão era então o seu auge, e se orgulhava deste feito, criado lentamente e sem pretensões visíveis - sabia que seria um grande número ter um leão tão poderoso domado e exposto, mas não sabia se seria capaz de o fazê-lo. E o fez sem pensar que o fazia.
Mas domar um leão não significa possuí-lo. Nunca.
O domador se aproxima do auge do seu espetáculo, o coração acelerado e o sangue pulsando por todas as extremidades, um número nunca antes realizado. Vai descendo a cadeira lentamente, olhando fixo nos olhos de seu parceiro. O leão permanece solene, quase inatingível - e então eles se tocam. Os olhares ainda fixos se permitem uma piscada longa e o domador toca o maxilar de sua fera. Vai aproximando seu rosto do leão, olhando nos olhos, mas a boca do leão não se abre. Desde o primeiro toque o leão já compreendeu o que vem a seguir, quais são os próximos passos de seu parceiro.
(Passa agora na minha cabeça que talvez ele não quisesse permitir que o domador corresse o risco.)
O felino não abre a boca de forma nenhuma. O domador, notando esta fatalidade, permanece alguns instantes fingindo que tudo que acontece é proposital, e então encerra o espetáculo agradecendo e distanciando-se com o coração disparado (o leão pode ouvir).
Encerrado o espetáculo e já na jaula do felino, domador e felino se confrontam como quem finge que nada aconteceu. O homem pergunta indagativo o que a fera achava do fim do número, e o leão resguardava-se em seu silêncio. Deitava-se, contudo, de barriga para cima, prostrava suas patas felpudas e também assassinas sobre ele, e o toque íntimo que ambos tinham ressurgia. O felino chegou mesmo a bocejar. Agora, acontecia uma nova dança onde o domador é quem pouco atacava e o felino ficava numa tocaia. Parecia não querer atacar seu confiado domador, mas ao mesmo tempo ia seguindo seu instinto e suas garras e dentes começavam a se mostrar, de vez em quando. Tomava uma súbita consciência de quem era o homem que agora enxergava de outra forma, e freava um instinto, ou permitia que ele aflorasse. Iniciava-se um jogo que incomodava ao domador, mas que ele não sabia apontar exatamente o que era.
Desde então, animal e homem nunca mais foram os mesmos. O sono deles mudou e os silêncios que existem entre os dois parecem rarefeitos. Talvez o animal esqueça disso com maior facilidade, mas o domador parece não somente lembrar como estar disposto a conseguir completar o número.
Mal imagina ele que talvez colocar a cabeça dentro da boca do animal não seja a melhor das ideias, especialmente quando se trata deste felino.

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