Fatalidades

Toda sexta-feira é igual: o pessoal sai aqui do trabalho ensandecido por uma boa cerveja, pegação, entretenimento num geral. Os mais saidinhos, como o Zé e a Pâmela, contam as horas pra cair na balada e beijar quantos puderem, numa noite só. É sair do trabalho, largar todas as papeladas burocráticas e enjoadas em cima da mesa e correr pra casa - banho, perfume, charme, taxi, balada (provavelmente gls). Semanalmente. A rotina da balada é simples: chega, bebe, dança, pega. Se não pegar, dança mais até amanhecer por que tem que fazer o preço da entrada valer a pena, não é?
Todo mundo espera desesperadamente por sexta-feira. Todo mundo, menos Henrique. Henrique é mais caseiro, gosta mais de um videogame, de um cheetos parmesão e uma coca-cola. Usa calça skiny, óculos de armação grossa e, quando não está com a cara nos papéis do escritório, está com a cara em algum livro com títulos inquietantes como "Melhor Nunca ter Sido: O Mal de Vir a Existir" ou "Montanhesas Tatuadas e Caixas de Colheres do Daguestão". É tímido, conversa baixo, vive de fone de ouvido e tem uma espessa cabeleira preta. Nunca deve lavar.
O nosso querido Henrique é um pouco amigo do Zé e da Pâmela, que vivem chamando-o para sair. Digo um pouco por que, daqui da minha mesa, noto como as vezes eles são inoportunos e acabam chateando Henrique. Dizem que ele precisa urgentemente arranjar alguém, se divertir a dois, que é impossível ser feliz sozinho. De tanto ser chamado para virar uma noite de sexta, há umas duas semanas Henrique aceitou ir a uma boate (provavelmente gls) com eles.
Na segunda-feira seguinte, Zé e Pâmela fofocaram ao escritório todo que Henrique colocou tais e tais roupas, que estava gatíssimo - a seu modo - e que, quando eles chegavam para buscá-lo, ele disse que já tinha recebido outro convite e, em seguida, entrou num taxi que o esperava, amarelo como o seu sorriso. O choque de que Henrique teria outros círculos sociais além do trabalho desestabilizou tanto Zé e Pâmela que eles precisaram contar isso no instante em que entraram pelas portas do trabalho. E logo depois chegou Henrique.
As roupas desleixadas, o cabelo mais empastado que nunca, olheiras fundas por trás do óculos, e um corte no lábio. Mas um sorriso dos maiores estampando a cara. Realizado.
Quando perguntado sobre o que tinha acontecido para que chegasse como quem viu o passarinho verde, respondeu somente que "Zé e Pâmela tinham razão. É impossível ser feliz sozinho.", e foi se sentar, satisfeito, em sua cadeira. O escritório inteiro se entreolhou e, sem explicitar as suspeitas, silenciamos todos.
Terça, quarta, quinta. A cada dia que passava, o desgaste físico de Henrique era mais aparente. Parecia passar a noite toda sem dormir, chegava como quem tivera que se arrumar bem rapidamente e com um forte cheiro de álcool - além de uma óbvia ressaca. Mas isso não impedia o seu bem-estar e alegria no escritório. Na quinta, chegou mesmo a dar bom dia para cada um dos colegas, distribuir tapinhas nas costas e cantarolar uma música enquanto trabalhava. Mas nada disso era tão surpreendente quanto os ferimentos que iam surgindo: terça, um corte na orelha. Quarta, curativos em todos os dedos. Quinta, arranhões profundos nos antebraços.
Sexta passada, porém, chegamos ao ápice. Henrique chegou sorridente, mais acabado que nunca, segurando a calça que caía, mas com um quê de confusão no rosto. O sorriso parecia disfarçar alguma coisa, mas ninguém do escritório soube desvendar o que seria. Pois bem: no final do expediente, pouco antes do horário de saída, Pâmela foi entregar uns memorandos na mesa dele e, de repente, soltou um grito, e pediu que chamassem a ambulância. Quando acorremos todos até a mesa de Henrique, ele estava sentado em seu computador, suando-frio em bicas, os dedos enfaixados digitando devagar no teclado, como se fosse um zumbi, e uma poça de sangue marcava a região do ziper da calça bege. Já escorria pelas suas pernas, inclusive, e pingava lento no chão sob sua cadeira de rodinhas.
Tão logo os médicos chegaram, tão logo Henrique foi socorrido. Dizem que no hospital ele ainda gritou dizendo que precisava ir pra casa, que tinha compromisso. Que não podia decepcioná-la, não depois de tudo. Eu só fui visitá-lo no sábado a tarde, levei algumas flores por insistência da minha namorada, e ele agradeceu e segurou-as durante todo o tempo em que estive lá. Conversamos um pouco mas ele não quis falar sobre o assunto.
Na segunda, fiquei sabendo do laudo médico. Henrique teve seu pênis arrancado por dentes - com o saco e tudo. O choque de todo escritório perante a situação não rendeu mais que algumas boas piadas e umas caras de espanto. Até o final do expediente, já havíamos diminuído muito o fluxo de conversas sobre a falta de pinto do Henrique.
Mas eis que ontem, quinta-feira, Henrique me liga. Me pede para ir até o apartamento dele, regar as plantas. Diz que está com medo do que possa ter acontecido com as pobrezinhas, e pede que eu busque a chave no hospital. Com pena de sua situação, me proponho a jardinagem pelo colega de trabalho. Chego na rua especificada, subo o elevador e no quinto andar entro em seu apartamento. Coisa simples, não é, pegar um regador e molhar umas plantinhas. Depois de enchê-lo no tanque da área de serviço, vou molhando os pesinhos de flor-de-maio, calateia, gérberas e azaleias, espalhadas pelos móveis, cantos e sacadas. Mas quando me aproximo do quarto, um cheiro forte de sangue envelhecido me lembra do acontecimento e, curioso, me aproximo. Pronto para ver um pênis podre jogado em algum canto do quarto, abro vagarosamente a porta e, em choque, observo a cena.
Uma poça de sangue ocupando boa parte do centro da cama. Sobre os lençóis, um bocado de terra e diversas raízes grossas se alastram, imóveis, por toda a extensão do colchão. Bem no centro disso tudo, como se estivesse sob um holofote, uma planta carnívora repousa silenciosa, de boca aberta, em seu vaso partido. Em volta de sua boca, um batom vermelho forte foi passado de forma violenta e desordenada e, pendurado em algumas das folhas, um sutiã preto de renda. A monstruosidade toda permanecia, no entanto, completamente estática.
Com medo do que poderia acontecer se me aproximasse, vou dando passos vagarosos para trás. Quando finalmente alcanço a metade do corredor que leva ao quarto, ouço um barulho estridente - o toque de mensagem do meu celular - e, assustadíssimo, derrubo o regador, que faz tanto barulho quanto molha o chão do apartamento.
De repente, a imobilidade da planta-carnívora desaparece e ela volta-se de súbito para o local de onde veio o som. Parece sorrir. Suas raízes se tensionam e as folhas estremessem de prazer. Não cheguei a aproveitar mais que isso do espetáculo: disparei para a porta do apartamento, berrando como nunca imaginei alguém berrar fora de um filme de terror, e, somente quando cheguei ao lado de fora do prédio é que parei para raciocinar o que tinha acontecido. Me lembrei da mensagem e me preparei para xingar de todos os nomes a pessoa que a tinha enviado. Para minha surpresa, tinha sido ninguém menos que o próprio Henrique. A mensagem era simples, num tom grato, e dizia:
"Ah! Não esquece de regar a do quarto, viu? :)".

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