Questões transitórias

A cidade de São Rafael era conhecida por suas ruas largas e pouco movimentadas, com pedestres demais e carros de menos a transitar pelas avenidas enormes e com canteiros bonitos acompanhando os jardins. Mas de um dia pro outro - quase que literalmente - houve o boom dos automóveis e dos edifícios e São Rafael se tornou uma megalópole das mais terríveis e cruéis que poderiam existir. E foi tão súbita essa mudança de cidadinha de interior para maior cidade do planeta que ninguém, nem mesmo os melhores engenheiros ou prefeitos, conseguia desenvolver uma ordem lógica pra tanto sinal (conhecidos por lá como "Farol"), radar, faixa de pedestre, placa de trânsito, burocracia num geral.
Quando o trânsito já estava ficando insuportável e toda a verba de São Rafael era usada para, basicamente, contratar guardas e mais guardas que faziam a função de placas, sinais, radares, faixas e tudo mais que fosse necessário, quando bateu-se o martelo de que não existiam mais fundos para cobrir gastos do tipo, quando isso passou a afetar também a saúde com o número inacreditável de acidentes de trânsito e batidas por esquina, ouviu-se um eureca de algum gabinete anônimo que veio com a solução ideal: todo motorista era agora guarda de trânsito também. Observem quanta cidadania nessa ação social, podemos observar se quisermos, o quanto isso alimentava a moral e os bons costumes do trânsito, como isso criava bons motoristas conscientes e preocupados. Cuidando de si e dos outros, todos por uma São Rafael mais viva e sem buzinas. E para incentivar os cidadãos a cumprir o novo decreto, a cada 3 denúncias, um ponto na carteira era esterilizado.
É claro que não deu certo. Ao que a medida foi implementada, todos os motoristas passaram a andar na linha pensando que qualquer um poderia multá-lo em qualquer lugar. Mas bastou um dia, talvez nem mesmo 24 horas, pra um motorista com a corda no pescoço de tantos pontos na carteira ter a brilhante ideia de sair inventando denúncias contra Deus e o mundo para aliviar a sua penalização. E foi tamanho problema que em uma semana estavam todos com suas carteiras por um fio, procurando mais e mais carros para denunciar, para contar ao governo, aos vizinhos, aos animais se fosse o caso, a infração que o carro da frente tinha cometido. Os motoristas passaram a andar com cadernetas e lápis à mão, prontos para anotar qualquer placa que surgisse, e dirigir virou muito mais que se locomover de um lugar à outro de São Rafael, mas uma épica caçada em que todos eram lobos e todos eram cordeiros. Não adiantava que você quisesse ser bonzinho, multar só quem mereciam, fazer valer a lei de verdade. Não, nesse caso você talvez tivesse uns dois dias de carteira de motorista e fim. Tudo estaria terminado.
Então, tão de repente quanto foi o boom dos automóveis, a prefeitura inaugurou um metrô construído na surdina, sem nenhum anúncia. E assim, súbito, todo o desastre do deslocamento municipal foi jogado pra debaixo dos tapetes de asfalto agora desertos, cobrindo gente e mais gente empilhada dentro dos trens largos e barulhentos de São Rafael.

Comentários

Postagens mais visitadas