Oportunidades

Naturalmente, pela manhã, havia uma questão social a ser resolvida quando desceu indócil para comprar margarina no mercadinho de frente ao prédio marrom-sujeira. Observou os preços junto com uma moça de cabeça raspada com roupas desinteressantes, que até chegou a comentar o absurdo que era o preço da manteiga. Pra não deixá-la ali monologando, meneou com a cabeça e pegou a primeira Qualy que apareceu na prateleira. Em direção ao caixa ouviu alguém comentando algo sobre Nescau e Toddy serem coisas muito diferentes - um deles era achocolatado, aparentemente - e achou alguma graça dos dizeres, então deu um sorriso sincero a respeito. No caixa, enquanto a atendente passava os códigos de barra naquelas maquininhas, ele observava uma marca de chupada em seu pescoço e, quando ela terminou de passar e percebeu que ele tinha notado, estendeu-lhe a nota e as moedas com apenas uma mão, muito contrangida escondendo com a outra a marca.
Mais tarde, no metrô, ele estava farto de si mesmo quando se viu comprimido entre um cara bem alto e cabeludo, usando um moletom esportivo roxo, uma senhorinha gorduxa de vestido florido e chapinha no cabelo, um senhor de idade com cara de quem bebe muito chopp e uma barra de aço na qual ele inutilmente se segurava. Sentia a respiração do cara na sua nuca, a da moça próxima ao seu antebraço esquerdo e a do senhor, apesar de ele não sentir, conseguia ouvir de tanto que ele ofegava. O peito do cara empurrando suas costas, o da senhora ali próximo ao seu pâncreas enquanto que o senhor de idade, bem ele o empurrava com a bunda mais ou menos na região da crista ilíaca.
Como atendente de telemarketing, passou a metade da tarde descobrindo tudo que podia sobre Suzanas, Rosanas, Otávios, Franciscos, Flávios, Reginaldos, Paulinas para preencher formulários e vender jornais à eles. Desde de idade à Cadastro de Pessoa Física.
Na volta pra casa, antes de chegar a estação de metrô, quase foi atropelado por um carro que passava no farol vermelho. Gritou o xingamento mais feio que sua avó tinha lhe ensinado e ouviu o motorista gritar de volta algum xingamento tão feio quanto, enquanto ambos erguiam e exibiam o dedo do meio da mão esquerda. Ainda emputecido, comprou o bilhete do metrô de uma atendente japonesa simpática que perguntou à ele - em pleno horário de pico! - o que tinha acontecido pra ele estar tão bravo, ao que ele respondeu: "Não tenho muito contato com as pessoas. A solidão anda me perseguindo."

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