O pouco tempo que sobra

Abri devagar a gaveta da cozinha, distraído com a outra mão a alcançar um pão, e tateei a procura de uma faca. Senti dentes de garfos, colheres, diversos cabos, pra então finalmente alcançar uma faca. Pesada e esquisita, ela era diferente das outras, o que me fez desviar os olhos do pão e notá-la pela primeira vez.
A faca era pesadíssima, toda de metal, com um cabo gordinho e desenhado com muitas firulas e arabescos. A parte cortante, já não mais tão afiada, perdia-se fina e sem dentes. Prateada, bonita. Mas com uma cara de velha.
Sentei-me. Girando a faca e analisando-a, percebi que se tratava de uma faca de gerações passadas, utilizada numa ceia de casamento por um bisavô meu, engomado em seu terno e chapéu, com o vocabulário robusto a acariciar alguma bisavó minha. Cortando alguma carne deliciosa com essa mesma faca, naquela época lustrosa e bonita, demonstrando toda a aristocracia que um jantar a dois.
Na verdade, esta faca foi o que salvou um antigo pirata, pronto para ser morto por um sabre afiadíssimo, que a alcançou sobre um barril ao seu lado e, numa reviravolta acrobática, defendeu todos os ataques do inimigo com uma faca à epoca com pouco corte, talvez usada no máximo para desarrolhar as garrafas de rum.
De fato, esta faca pertencia a um tesouro perdido, da rainha de um paí longíquo onde os dodôs ainda existiam e a paisagem natural belíssima refletia nas moedas de ouro e na faca prateada, posta cuidadosamente ao lado de uma taça de cristal tão floreada quanto a própria faca.
Também poderia ter sido ela quem matou o velho Alberto Costa, com 32 facadas de sua esposa, enquanto dormia no sofá depois de um porre e dez mulheres diferentes num bordel. Sangue escorrendo pra todo lado e uma dor alucinante de uma faca sádica que nem cortar de uma vez corta, vai devagar, doendo muito mais do que cortando.
E agora a pobre coitada está ali, cortando pão, talvez o ato mais insignificante de sua vida, talvez seu momento de calmaria, uma velhice tão esperada nas reviravoltas de uma vida de aventuras.

Comentários

Cristina disse…
Tenho uma chave da época das grandes navegações para o Japão aqui em casa que aposto ter vindo de alguma dinastia de príncipes distantes, que abria alguma cidade secreta abaixo do oceano ao redor da ilha nipônica.

Aposto meus fones de ouvido que essa faca e minha chave já foram companheiras.

E fico aqui imaginando uma faca de cortar pão, com suas provavéis serrinhas cruéis, matando alguém. :]

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