New Perspective

Nem sabia bem como foi, exatamente. Quando percebeu, já tinha se passado tudo de uma vez, já era uma nova história, um novo parágrafo. Sabia por que, entendia a situação, tinha vagas lembranças, mas nada definido. Tudo que podia entender é que estava sentado, um gato estranho ali, se esfregando devagar por suas pernas, seus pêlos tocando sua pele. E essa sensação era familiar.
Abaixou-se e levou as mãos entre as orelhas do felino, que ronronou agradecido. O ronrono levou um tempo para ser captado pelo cérebro, a informação parecia não se encaixar. Os dedos tocando o pelo castanho do gato, suavemente, e o semblante franzia-se numa expressão de pensamento.
Esse gato claro não devia estar aqui. Onde estava, afinal, aquele de pêlo preto, que pulava em seu colo e ficava horas ali, a cabeça baixa, os olhos fechados, um ronrono de verdade vindo com o carinho entre as orelhas? Tinha ido embora.
A culpa era dele, no fim. De alguma forma, assustara o pobre gatinho, que o abandonara tanto quanto ele o abandonara. Era uma separação mútua, ambos caminhavam para direções opostas, só natural. Não, nada de natural. Que isso, cadê o gato, cadê o ronrono?
O calor dos pêlos claros nos dedos foi se desfazendo. O gato estranho, que não era aquele de outro momento, e sim o que se enrolava em suas pernas, saía discretamente de perto dele. Suave, quase imperceptível, lhe dava as costas, o rabo empinado, rumando para o meio do carpete, onde se entenderia e se lamberia num banho interminável. Talvez esse gato precisasse muito de uma companhia, mas nesse momento não lhe veio isso a cabeça. Abriu a porta e, deixando-a aberta, abandonou o felino pardo. Ali, no chão, sozinho, ele parecia ainda mais indefeso que nunca quando desistiu do banho e ficou olhando a noite entrar suave pela porta. Escura, sem cor. Sem lua.
Onde fora seu dono? Nunca fora seu dono. Nem sabia quem era aquele gato. Era o gato preto que fazia diferença, que era essencial. Era o gato preto que precisava ser resgatado para, finalmente, resgatar seu dono, insconsciente de o fazer. Sabe-se lá onde estaria o felino, talvez enfiado em uma cama gostosa com um novo dono ou uma nova dona. Talvez sentado num muro olhando a brilhante lua iluminar sua pelagem negra. Talvez estivesse ocupado caçando um rato para se exibir depois com a sua presa. Talvez estivesse justamente vagando, a procura do dono, talvez mesmo sem se dar conta disso.
E esse pensamento agradou o dono dos gatos, que não era dono de verdade, de ninguém.
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