Aos que nunca bocejam

Falam por aí, em ruas limpas e cidades vizinhas, que houve uma vez em que um garoto partiu numa jornada pra ver o vento. Sentir o vento ele podia sempre, mas queria um contato mais exato do que o bagunçar dos cabelos.
Na manhã úmida, o garoto preparou uma mochila cheia de coisas sem cor, perdidas entre canções que aprendera gostar a pouco, vindas dos fones de ouvido. Não contou pros pais sobre a viagem, mas muitos amigos foram privilegiados com a história.
Quando saiu de casa, deixando uma quebra de ritmo em sua vida planejada, viu o azul bonito do céu e os algodões fazendo as vezes de nuvens, tentando imitar formas conhecidas. Sentiu o vento passar-lhe de leve, plastificou um sorriso durável última geração e foi.
Tomou um ônibus, outro, mais um. Perdido em malhas rodoviárias de asfalto preto, viu casas, prédios, grama. O céu, o tempo todo. Sempre com a janela aberta, sentindo a ventania forte compassada com o ritmo frenético da ansiedade. Não estava sozinho, mesmo a poltrona ao lado estando vazia.
A espera milenar do ônibus que não chegava veio a calhar: colocou pensamentos em ordem, analisou decisões, refez os planos pra rimar com os seus. Trazia os sonhos pra somar aos seus.
Cantou baixinho aquela música verdinha, uma duas três vezes, quatro até.
Rabiscou alguma cor nos objetos descolores, mas não estava satisfeito. Um céu tão bonito, umas árvores de galhos tão distintos, e ele ali tentando em vão fazer um mundo colorido numa folha branca de papel amarrotado, justo quando mais via cor pela janela.
Sentiu o ônibus parar e o coração disparar. O medo freou-lhe a garganta, a voz sumiu. E se o vento não gostasse dele? E se não fosse bom o bastante? E se ele...
...esquecesse essas dúvidas infundadas? Quando viu o vento e sentiu-o envolvê-lo em um abraço desejoso de infinito, parou de pensar. Cérebro é coisa de gente sem cor.
E assim não viu o tempo passar. O vento tinha um cheiro que ele não identificava, que não trazia lembranças descolorantes, que não pertencia a passado incolor. Era a letra maiúscula do parágrafo seguinte.
O sorriso tinha se desplastificado e pintado uma nova coisa, que não pode chamar-se sorriso, no que desvalorizaria o que ela realmente é. Como dar nota dez pra uma prova nota onze.
Não queria que o vendaval terminasse, mas despedia-se de uma vida de verdade com a promessa de pintar a sua vida de mentira e aproximá-la do vento, que parecia tão incomum quanto era. Naquela época não sabia pra onde o vento ia e não se sentia no direito de sugerir.
Apenas foi.

Comentários

MaycOll Silveira disse…
O vento nunca se sentiu tão vento em palavras como quando leu o seu texto!
Pode ter certeza que depois de te encontrar o vento virou vendaval de cor sem você!
B. disse…
Só faltou um 'King Crimson - I talk to the Wind' ao fundo.

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Um dos mais belos textos que eu já tive o prazer de ler no blog.
Ao mesmo tempo sério e com um tom descompromissado e inocente, tudo juntou-se na dose certa para criar o clime perfeito - a sensação de liberdade em cada palavra, remetindo á encantadora simplicidade da vida e da natureza, tão difícil de ser vista com admiração pelas retinas e olhares cansados, fatigados e por vezes atrofiados pela pressa e pela desvirtualização de valores dos dias de hoje.

Minhas congratulações sinceras ao autor! Raros são os textos que em poucas palavras exprimem tantos sentimentos, e mais raros ainda são aqueles que o fazem com tamanha maestria. Kudos para você, champz! (H)

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Voltemos á programação normal, agora.

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