Feliz incapacidade.

Parado no ponto de ônibus, esperando indefinidamente pelo veículo que me levaria pra casa, arranquei o caderno de dentro da bolsa e, tirando uma caneta de um dos bolsos menores da mochila, passei a rascunhar um texto. Estava de fones, ouvindo alguma coisa bonitinha, e estava subitamente inspirado - talvez fosse o tédio, mas eu prefiro acreditar que estava inspirado - para escrever um texto, preferencialmente sobre amor. Algo como alguém dar carona pra alguém e aí rolar um clima, não sei muito bem, não lembro. Acho que eu já devia ter uma ótima idéia pro final, por que eu considerei diversas possibilidades de escrever esse conto. 
Uma das versões trazia duas pessoas, ainda de sexo indefinido, provavelmente um homem e uma mulher, quando a mulher daria carona para ele e, então, depois de alguma conversa significativa, os dois veriam um clima e aí pá. Mas não rolava. Num carro, as pessoas estão sempre muito distantes, a menos que façam algum esforço para ficarem juntas, e estão sempre fazendo coisas diferentes: uma dirigindo, a outra nada de interessante. São dois bancos, e a situação mais separava do que juntava os pretendentes ainda indefinidos. Descartei.
Aí superei a falta de proximidade colocando os dois - fossem eles quem fossem - numa moto. Imaginei a moça agarrada ao homem, os dois de capacete, todo aquele contato de corpos, era quase uma cena erótica. O clima estava quase lá, mas motos são muito rápidas, o som do vento nos ouvidos atrapalha muito um diálogo, quase impossível falar de amor em cima de uma motocicleta em movimento que não esteja numa velocidade muito abaixo da máxima permitida. Além do que, eu não tenho prática nenhuma com erotismo, não me acho capaz de escrever algo do gênero, pelo menos não ainda. Descartei também.
Pensei então em, ao invés de uma carona, um oferecer ao outro a companhia, os dois indo a pé. Andando pelas ruas escuras de uma cidade impessoal, cinzenta, me parecia que eles eram o único pedaço de amor visível na cena, e isso me agradou. Até escrevi um parágrafo, com um diálogo fajuto de amor, de companheirismo, uma coisa bem furreca. O cara e a garota eram praticamente um casal, se eles fossem pra lua de mel logo depois da cena eu acharia completamente cabível, tão melado estava o diálogo. E, pra piorar a situação, eu tinha fugido da minha própria premissa: não era mais uma carona, e isso me parecia extremamente importante, é algo como precisar do outro e o outro se propôr a ajudar. Joguei essa idéia fora, também.
Exasperado, sem conseguir escrever uma cena de companheirismo que me valesse a pena, olhei pra avenida, mais pra não olhar a folha já toda rabiscada do que pra ver se o ônibus vinha. E então passaram, numa bicicleta, dois caras. Não prestei muita atenção nas características deles, mas um vinha pedalando e trazia o outro sentado de lado no ferro entre o guidão e o banco. Os braços do que pedalava envolviam o outro num abraço involuntário, já que seguravam o guidão para guiar a bicicleta, enquanto o outro segurava no guidão apenas pra ter algum apoio. Estavam rindo muito, e pareciam extremamente felizes. Não ouvi uma palavra do que eles disseram, mesmo que não estivessem se movendo muito velozes. Nem sei se eles eram de fato homossexuais ou se eram só amigos dividindo a mesma bicicleta por conviniência.
Era a minha cena, desfilando na minha frente. Era o que eu queria, esse tempo todo, escrever, e me sentia incapaz de jogar no papel. Mesmo que eu não tivesse certeza de que havia amor ali, era esse sentimento que eu queria expressar, e eu ainda me sentia incapaz.
Por isso desisti do texto. Fechei o caderno, sorrindo como eles, e desisti de escrever algo que não pode ser escrito com a mesma propriedade de ser visto. Talvez, para que alguém visse a cena da mesma forma que eu vi, tivesse de estar num estado de espírito semelhante ao meu, e por tanto era um momento só pra mim, que só eu podia ter, sentado ali procurando por um sinal de amor que me ajudasse a escrever sobre o amor. E que, mesmo que eu tentasse, não conseguiria reproduzir. Pois o escritor é o interprete da vida, e a vida é uma língua intraduzível.

Comentários

Victor disse…
MUITO FODA! =)
Em especial, aquela última frase, muito bom! :P
Ah, você escreve fantasticamente bem. Como eu já disse, escrever sobre não conseguir escrever - porque o que você disse sobre não deixa de ser isso - é coisa pra poucos (e digo isso querendo dizer escrever bem).
Way to go, way to go!
B. disse…
Belíssimo texto, manolo!

Só ficou a cara do Paulo Coelho. D:
Daysinhaa disse…
Cada vez que eu venho aqui comentar, sinto que meu vocabulário está restrito, são sempre as mesmas palavras de 'Ah como você escreve bem', 'Ah eu adoro seus textos', só que eu não vejo outras maneiras de dizer o quanto eu gosto da sua maneira de botar as coisas 'num papel' e tocar a pessoa que lê, PORRA está tudo tão perfeito e... (aquela falta de palavras me bate)

Em resumo, perfeitO!
Gamei em: 'Pois o escritor é o interprete da vida, e a vida é uma língua intraduzível.'

MUITO REFLITÖA

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