O problema é ser-humano
- Você me ama?
Guardo minhas pinças, escondo meus chifres, recolho as garras, disfarço as escamas, oculto as guelras, apago as orelhas pontudas, nego o dedo a mais, recolho as asas de morcego, desapareço com as antenas, engulo os caninos pontudos, dou cor à face pálida, diminuo o estômago externo, retiro a serra do meu braço, coloco o pé no lugar que ele devia estar, restituo a pele, limpo os lábios ensangüentados, contraio as pupilas, engulo o veneno, arranco a cauda de jacaré, curo os ferimentos, paro os movimentos compulsivos do corpo, oculto a coluna vertebral a mostra, recoloco cabeça sobre o pescoço, retiro a corrente fundida ao meu pulmão, destranformo-me.
Mas de nada adianta.
- Não.
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- Traga já o seu motivo.
- Motivo? De que me importa o motivo de, por hora ou outra, esvaio-me na falta deles? Se o meu problema é justamente não haver nenhum motivo para justificar meus atos? Ajo por falta de motivo, por problemáticas insiceras. Viceral, suponho, mas ainda assim comum. Não medi conseqüências, não pensei em por quês. E duvido que você o faça o tempo todo para poder me julgar assim. Abandonei, deixei, esqueci, e não me puno por tal. Nem você pode me punir.
- Ainda bem que penso por nós dois. Ainda bem.
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Nem mais um passo. A casa não é minha, isso é invasão de propriedade. Por deus, não, eu não posso. O limiar de uma decisão está aqui, nesse tênis imundo que suja o carpete. Sigo o instinto, adentro a casa, encho-me de curiosidade e então corro o mais rápido que puder antes que me notem? E essa necessidade estúpida de entrar aqui nem se vê motivos. Estou querendo entrar só pelo prazer da aventura, para os hormônios que me enxeram de entusiasmo. Avante! Avante! Que se suje todo o carpete em nome de uma nova descoberta humana que delimitará ainda mais esse ser inexplicável, insólito. Pensando bem, o que ganho com isso? Uma treslouquice juvenil que me fará sorrir por alguns minutos e, quiçá, mais uma boa lembrança na coleção? Pois então, valhe o risco.
- O que está fazendo na minha porta, rapaz?
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